Por regra, é ignorado ou desprezado o papel decisivo de Machado Santos numa coisa tão "insignificante" como o fim de 767 anos de Monarquia e a inauguração de uma nova fórmula govornativa.
Machado Santos
D.R.
Normalmente, tem-se uma ideia vaga dos acontecimentos de 5 de outubro de 1910, que determinaram a implantação da República em Portugal. A maioria das pessoas limita-se a saber que o novo regime foi proclamado por José Relvas da varanda da Câmara Municipal de Lisboa e que, antes disso, os revoltosos se tinham concentrado na Rotunda, que era o nome corrente da Praça Marquês de Pombal (ainda sem a estátua). São facilmente reconhecidos os nomes de conspiradores republicanos como Afonso Costa, António José de Almeida, Manuel de Arriaga, Bernardino Machado, o já referido Relvas e poucos mais.
Por regra, é ignorado ou desprezado o papel decisivo de Machado Santos numa coisa tão "insignificante" como o fim de 767 anos de Monarquia e a inauguração de uma nova fórmula governativa. Tenham-se ou não frustrado no campo social e na reforma das mentalidades as boas intenções dos mentores da mudança, foi como que uma refundação de Portugal, com renovados símbolos e um olhar mais empenhado sobre os mitos da nossa identidade.
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O tal Machado Santos, António Maria para os mais íntimos, era um rapaz de Lisboa, filho de um modesto comerciante, nascido em 1875 no Socorro e que aos 16 anos se alistou na Armada e aos 20 já era comissário naval. Desde muito novo, deixava-se arrebatar pelas ideias revolucionárias e, entusiasmado pela leitura de Vítor Hugo, via-se em sonhos à frente do povo esfarrapado, encabeçando uma revolução para fazer rolar as coroas e espezinhar as sotainas. Mas como a tarefa de levar ao triunfo uma revolução épica não se afigurava coisa fácil, começou por militar nas fileiras dos dissidentes do Partido Progressista, liderados por José de Alpoim, que formavam uma "esquerda monárquica" que progressivamente se ia aproximando dos ideais e dos projetos republicanos.
Simplesmente, o pingue-pongue das jogadas políticas na penumbra dos gabinetes, com ecos subservientes ou indignados nas arquibancadas de S. Bento, não o entusiasmava tanto como o brilho do enorme sol da sonhada Revolução. Como não escondia as suas ideias, não admira que viesse a ser contactado por camaradas de armas mais velhos para entrar num movimento revolucionário republicano que se preparava.
NA 'CONSPIRAÇÃO DO ELEVADOR'
E, efetivamente, no dia 28 de janeiro de 1908, durante a ditadura de João Franco (um político incumbido pelo rei D. Carlos de governar com o parlamento encerrado), falhou uma conspiração republicana que ficaria conhecida por "golpe do elevador da Biblioteca" porque os conspiradores se reuniam junto do ascensor que então ligava a Praça do Município ao Largo da Biblioteca Nacional. Implicado até ao pescoço, Machado foi porém dos que conseguiram escapar à prisão. Seguiu-se, logo quatro dias depois, o Regicídio a morte a tiros do rei e do príncipe herdeiro em pleno Terreiro do Paço, por iniciativa de membros da Carbonária, a sociedade secreta libertária e anticlerical com ramificações em diversos países cujo nome fazia tremer tronos e altares. Não nos espanta ver Machado Santos a aderir a essa organização em junho seguinte, cumprindo os misteriosos rituais de sangue exigidos e ficando logo a fazer parte da Alta Venda, o órgão de direção que integrava também Luz de Almeida e António Maria da Silva.
A Brasileira do Chiado e o jardim de S. Pedro de Alcântara eram os locais lisboetas de eleição para os contactos entre membros da Carbonária, que ia estendendo fortes ramificações aos quartéis.
A polícia, ainda desconhecedora das sofisticadas técnicas repressivas mais tarde desenvolvidas pela Gestapo hitleriana e logo adotadas pela PVDE salazarista, mostrava-se incapaz de controlar os conspiradores. Aliás, a Monarquia Constitucional encontrara, após a morte de D. Carlos e a subida ao trono de D. Manuel II (um jovem de 18 anos, filho segundo do rei, impreparado para a função e totalmente dominado pela mãe beata), uma fórmula política de "acalmação" que passava por uma estranha e contranatura aproximação com os socialistas (que tinham fundado o seu partido em 1875) e uma relativa benevolência face aos arqui-inimigos do Partido Republicano Português (PRP), fundado em 1876, e que detinham a CM de Lisboa. Importa recordar que, embora oficialmente ligado à Igreja Católica, o regime da Carta Constitucional de 1826 era política e economicamente liberal.
RESISTIR NA ROTUNDA
É neste quadro que a revolução republicana, que se queria definitiva, acabaria por ser marcada para os primeiros dias de outubro de 1910, numa convergência entre o Diretório do PRP, a Carbonária e setores militares antimonárquicos. A última palavra coube ao almirante Cândido dos Reis, que fixou para arranque das operações a noite de 3 para 4, depois de ter corrido a notícia de que os navios de guerra Adamastor, S. Rafael e D. Carlos, com marinheiros conjurados entre as tripulações, iam largar do Tejo. Quando menos se esperava, no dia 3 de manhã uma das figuras mais destacadas do Diretório republicano, o médico psiquiatra Miguel Bombarda, foi assassinado, a tiro por um doente mental.
Nunca se apurou cabalmente se o crime foi, ou não, político, mas a opinião pública revolucionária (quase toda a população de Lisboa) culpou logo "a rainha D. Amélia e os padres" de uma tragédia que pode não ter passado de um ato tresloucado. Mas foi o rastilho.
O quartel-general dos dirigentes republicanos foi instalado no edifício dos Banhos Públicos de S. Paulo, ao Cais do Sodré. Machado Santos tinha por missão pôr os quartéis em polvorosa; e na tarde do dia 3, ainda Bombarda agonizava depois de ter sido operado em S. José, vemo-lo a transmitir as últimas instruções aos sublevados de Infantaria 16, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique.
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A coisa, porém, não correu tão bem como previsto, e só três unidades aderiram: Infantaria 16, Artilharia 1 e Marinheiros, além dos cruzadores Adamastor e S. Rafael. De madrugada, trocados alguns tiros com uma patrulha da Guarda Municipal, fiel à Monarquia, na Rua Ferreira Borges, os revolucionários, com sete peças de artilharia puxadas por muares, convergiram para o Rato, de onde, pela Rua da Escola Politécnica, tentaram alcançar o Quartel do Carmo, sede da Municipal.
Por alturas de S. Mamede depararam com outra patrulha da Municipal, vinda da Rua Alexandre Herculano, e envolveram-se num combate pela encosta abaixo, até ao quiosque da Avenida da Liberdade. Verificando serem incapazes de furar, decidiram então recuar para a Rotunda, onde se barricaram, com os seus canhões, atrás de tábuas, ramos de árvores, pedaços de móveis, chapas de zinco, lixos de ocasião.
Entretanto, nos Banhos de S. Paulo, o Diretório do PRP convence-se de que tudo está perdido. Esperava os revoltosos o degredo, a prisão, a infâmia. Temperamento depressivo, Cândido dos Reis passa por casa, em Arroios, veste a sua farda de almirante e mete uma bala na cabeça.
A notícia do trágico acontecimento correu depressa, e embora Relvas e outros elementos do Diretório tenham feito constar que era boato, muitos dos sublevados da Rotunda perderam o moral e foram abandonando a posição. Os oficiais contavam espingardas, tinham receio, desistiam. Só um permaneceu, arengando às praças, instilando ânimo aos civis. Quem? Machado Santos. E, às 5 da manhã, ei-lo à frente de uma escassa centena de soldados e de uns 50 civis as únicas forças da Revolução que ali permaneciam.
O REI JOGA O BRIDGE
O jovem rei, esse, enquanto os revolucionários se concentravam na Rotunda jogava o bridge com alguns cortesãos numa sala do Palácio das Necessidades. Nessa noite de 3 de outubro tinha chegado havia pouco de Queluz, onde oferecera um banquete ao Presidente da República do Brasil, Hermes da Fonseca, em visita oficial ao nosso país e testemunha imprevista da Revolução.
O almoço fora em Sintra (onde permaneciam ainda as rainhas mãe e avó) e o chá a bordo do S. Paulo, o cruzador brasileiro que trouxera o mandatário. D. Manuel vestia ainda a casaca do banquete e estava inquieto com o estrondear da artilharia dos navios sublevados e com as notícias que lhe chegavam, desencontradas. A certa altura, muito pálido, pôs-se de pé e disse: "Sabem qual era a minha vontade agora? Era vestir um fato de louça esmaltada e sair para a rua à frente dos meus lanceiros!" Sonhava com cavalarias altas, como todos os rapazes, apesar da educação fradesca e da influência da mãe ultramontana, mas no íntimo já tinha decidido não arriscar a vida em face do inimigo plebeu. Fardou-se de gala, mas continuou a bater as cartas com os áulicos. Passou depois ao jardim e levou a madrugada em claro, num pavilhão retirado entre arvoredo.
Já na manhã de 4, tropas monárquicas começaram a concentrar-se no Rossio, por ordem do comandante militar de Lisboa, general Rafael Gorjão. Foi então que os cruzadores sublevados começaram a fazer ouvir a sua voz, bombardeando a fachada do Palácio das Necessidades.
Lá dentro, o reizinho quis saber se estava no Tejo algum navio de guerra britânico que atacasse as unidades sublevadas da marinha do País sobre o qual reinava, ignorando decerto que a loura Aliada se comprometera junto da missão republicana que acolhera em julho a não intervir nos assuntos internos portugueses. Deu por fim ordem de ataque às forças da Escola de Vale de Zebro, valendo a recusa do comandante em acatá-la.
Idêntica atitude teve o iracundo general Gorjão, já sem falar do governo, presidido pelo sólido médico transmontano Teixeira de Sousa, homem de uma certa lucidez e pragmatismo, de modo algum reacionário.
Só Paiva Couceiro, um simples capitão de Artilharia, fazia questão de lutar pelo trono ainda que, na verdade, a dinamitagem de pontes e de estradas por membros da Carbonária impedisse o acesso a Lisboa de mais tropas fiéis à Coroa.
A QUEDA DA MONARQUIA
Concentrando-se junto da Penitenciária, no alto do Parque Eduardo VII (então ainda não ajardinado como hoje), a coluna de Couceiro começou a abrir fogo sobre os republicanos da Rotunda, sendo por seu lado alvejada pelas baterias de Artilharia 1, ali em Campolide. Para fugir ao cerco, Couceiro girou para o Torel, de onde continuou a alvejar a Rotunda cujos canhões republicanos ripostavam sem cessar. Durante o dia, os estrondos pairaram sobre Lisboa, e tombavam os mortos e os feridos.
A notícia da tomada do cruzador D. Carlos deu nova esperança aos republicanos, fazendo engrossar o número de rebeldes na Rotunda. Crescia a convicção de que a Revolução triunfara.
Já no dia 5, manhã cedo, o pedido de cessar-fogo de uma hora pelo representante da Alemanha, a fim de permitir a repatriação de súbditos do seu país, foi, com o seu agitar de bandeiras brancas, interpretada pela população como uma rendição dos realistas. A Monarquia não mais se recompôs. Como no 25 de Abril de 1974, o povo vitoriava nas ruas as forças revolucionárias, levava em ombros Machado Santos, apoiava-o aos gritos quando ele conferenciava com Gorjão. E, por volta das 9 horas, José Relvas, Eusébio Leão e outros membros do Diretório do PRP proclamavam a República da varanda dos Paços do Concelho.
Ainda na véspera, o rei fora aconselhado a retirar para Mafra, onde jantaria melancolicamente na sala dos troféus de caça. Ali se lhe foram juntar a mãe e a avó. "Ah, se o Carlos fosse vivo", dizia D. Maria Pia, que idolatrava a memória do filho. Se este fosse vivo ter-se-ia talvez desdobrado em contactos com comandantes de unidades e políticos, dando ordens ao telefone ou por estafeta. Mas era ele mesmo que dizia que Portugal era "uma Monarquia sem monárquicos". E tinha razão.
De Mafra, onde passaram a noite de 4 para 5 sem telefone mas com notícias que iam chegando sobre o ruir do seu mundo, a família real e um punhado de cortesãos abalaram em automóveis para a Ericeira, depois de saberem que o iate Amélia os esperava ao largo já com o infante D. Afonso, irmão de D. Carlos, a bordo, recolhido horas antes em Cascais, onde se refugiara na Cidadela. "Mais devagar, não vá pensar-se que fujo!", ordenou D. Maria Pia ao chauffeur. Já no mar, decidiram fazer rumo a Gibraltar, afastando a ideia inicial de D. Manuel ir resistir para o Porto. O Rochedo não passaria, aliás, de um ponto de escala: dali partiu o último rei de Portugal para o exílio em Inglaterra, onde morreria em 1932, apenas com 42 anos.
O REPUBLICANO CRÍTICO
Mas voltemos ao nosso Machado Santos, o homem que nos dias que se seguiram à implantação da República seria vitoriado como o seu fundador. Sempre inquieto e insatisfeito, a sua atividade nos anos imediatos traduzir-se-ia por uma permanente e incansável oposição aos contornos que os novos governantes deram ao regime verde-rubro e ao não cumprimento de antigas promessas. Afonso Costa e o seu Partido Democrático, saído da cisão do PRP ocorrida em 1912, seriam os alvos prediletos dos seus escritos no jornal O Intransigente, que fundou; mas ainda antes disso, logo três dias depois do triunfo revolucionário, quando o chefe do governo provisório, Teófilo Braga, o apresentou numa receção pública como "a alma da Revolução e da vitória", acrescentando que ele, Machado, era "como um bom sapateiro que, depois de acabar a obra, a vai entregar ao freguês, mas tem o direito de ver o seu nome à esquina de uma rua", não se conteve e respondeu ao velho intelectual e académico: "Olhe, sr. doutor, eu estou a achar muita piada a tudo quanto se tem passado depois do 5 de Outubro..." Teófilo, um falso modesto que gostava de ironizar e se tinha em elevadíssima conta, mantivera-se nos dias 4 e 5 de férias na Cruz Quebrada e contava depois ter ouvido "uns tiritos" para os lados de Lisboa.
Eleito deputado à Constituinte, crítico eterno do que via à sua volta, alvo de duros ataques dos democráticos de Costa, Machado fundou em 1914 o pequeno Partido Reformista e foi figura destacada do "Movimento das Espadas", quando, em 1915, um grupo de oficiais insatisfeitos foi entregar simbolicamente os seus ferros ao presidente Arriaga. Planeou em 1916 uma revolta, apoiado na guarnição de Tomar, que colocou a capital em estado de sítio. Preso e amnistiado, não deixou nunca de conspirar pelo que entendia ser o saneamento das instituições, embora possamos suspeitar que o seu gosto genuíno pelo conceito de Revolução sempre o tenha impedido de viver tranquilo. Não admira assim que tenha aderido, em 1917, ao movimento de Sidónio País, em cujos governos sobraçou as pastas do Interior e dos Abastecimentos dando, juntamente com o também pioneiro do 5 de Outubro Carlos da Maia, uma certa "credibilidade republicana" ao panache do "Presidente-Rei". Todavia, preocupado com a vertente repressiva do sidonismo e com a sua progressiva aproximação aos monárquicos, sai da carruagem a meio do caminho e torna-se novamente contestatário.
Desencantado mas nunca cansado, Machado Santos combateu de armas na mão contra as tentativas de restauração monárquica de 1919, em que foi protagonista da "Escalada de Monsanto". Fundou ainda, em 1920, a Federação Republicana, herdeira do Partido Reformista.
UMA MORTE TRÁGICA
Acabaria como a mais exacerbada das tragédias gregas a passagem de Machado Santos por este mundo de esperanças luminosas e obscuros tumultos quando, em 19 de outubro de 1921, foi uma das vítimas mortais da sinistra "Noite Sangrenta".
A "camioneta fantasma", levando na cabina e na caixa uma horda de marinheiros e soldados da GNR chefiados pelo cabo Abel Olímpio, o Dente de Ouro, foi passando pelas casas de destacadas figuras da vida nacional adversárias do Partido Democrático (então já dirigido por António Maria da Silva), assassinando-as barbaramente: ele, MachadoSantos, António Granjo, Carlos da Maia, Freitas da Silva e outros mais.
A mulher chorava na escada da sua casa, no n.° 14 da Rua José Estêvão, à Estefânia, quando a horda o arrastou para a camioneta.
Desciam a Almirante Reis (novo nome da Avenida D. Amélia) quando, no Intendente, o motor se avariou. Desceram todos . "E se a gente o matasse já aqui?"; disse um dos marinheiros apontando para Machado Santos. "Veja que as minhas pulsações não aumentaram", respondeu tranquilamente o herói da Rotunda. Soaram então os tiros, e o corpo do fundador da República tombou ali perto da casa do Socorro onde nascera 46 anos antes.
Merecia que lhe dessem o nome de uma avenida. A que conduz ao futuro, à utopia, ao lugar que nunca se alcança.
Artigo publicado na VISÃO História nº 10